Friday, September 22, 2006

A VIDA NO TEATRO

Hoje ela escolheu ficar no lado oposto da cama. Acomodou-se com as macias almofadas servindo-lhe de apoio confortável às costas e com o livro de anotações sobre as pernas, estando já habituada a esta posição, começou a escrever. Não sabia qual seria o início, quiçá o final do que haveria naquela folha branca quando tudo terminasse.

Sentiu necessidade de uma companhia. Na ausência de amigos sinalizando, acabou por ceder ao inferninho barulhento da televisão. Só não estava pior porque encontrou um canal transmitindo passeio àquela Ilha que um dia pretendera voltar, e a narração do programa colaborava com seu treino no idioma estrangeiro favorito.

Mesmo diminuindo cada vez mais o volume do aparelho, ainda sentia o incômodo que lhe era aquele barulho saído de uma caixa cinza com uma frente de vidro colorido que mudava de cor e desenhos a toda hora. Aliás, era o que menos fazia quando ligava a tevê: olhar pra ela. Concordava que para notícias mais urgentes, se não ganhava da sua inseparável Internet, a tevê também contribuía para a ligação da grande Aldeia Global na qual o planeta se transformara em tão pouco tempo.

Passou então a se concentrar no objetivo do documento daquela noite. As memórias e os detalhes da noite anterior completamente insone vieram-lhe de imediato como que a lembrá-la que havia muita coisa bonita pra pensar. Quem sabe ela pensou que poderia incluir alguns desses detalhes – e outros, talvez – na dissertação que lhe cobraram sobre cada tópico daquele documento?

A noite seria longa, pensou. Não queria ficar muito tempo debruçada sobre o trabalho e gastando tempo de descanso com coisas que não lhe são prioridades. Pelo menos a partir deste momento em que se preparava para dar início ao projeto documental. Era sexta-feira à noite; seus sábados e domingos já estavam comprometidos há semanas com o tão procurado e esperado curso. Precisava se preparar para a aula da manhã seguinte, a começar tão cedo. Requeria-lhe descanso mental e físico. Preocupava-lhe repor o sono de duas noites: a atual, e a anterior.

Já tinha acontecido antes e de certa forma foi como uma peça de teatro que retrata a vida real, reeditada e reapresentada. E na sua opinião a “nova roupagem” dessa peça ficou muito mais agradável de se participar, e de se lembrar. Ou talvez fosse uma continuação da história que começara naquela primeira insone noite de que tem lembrança...

Não distavam tanto tempo uma noite da outra. A grande diferença, porém foi realmente no enredo da segunda peça. Muito mais profunda, ofereceu mais significados àquilo que começara na primeira noite-peça. Sim, por que não encarar os fatos vividos como peças de teatro, os quais tenham continuidades, como os capítulos dos livros dão um ao outro a ligação necessária par formar a história completa – e inevitavelmente deixar um marco na vida do leitor?

Agora, era uma peça com uma história real. Peças passadas em noites insones, cujo cenário não mudara em muita coisa a não ser alguns objetos de uso pessoal em lugares diversos do anteriormente encontrado, e o objetivo com o qual começaram cada peça. Na primeira, o egoísmo, o individualismo. Dali, uma semente foi plantada e na segunda peça percebeu que a semente brotava e uma amizade tinha toda esperança de crescer dali. Então, foi nessa linha de pensamento que o enredo da segunda peça seguiu.

A lembrança das belezas só possivelmente testemunhadas se a noite é insone vem novamente diante de seus olhos: a cor do céu. Na primeira vez, o alaranjado desfazia-se em nuances perfeitas até encontrar o azul. Na vez seguinte, apenas o cinza. Cinza bem claro. Tudo nuvem no céu. Céu diferente. Cada céu e cada dia são únicos. Como a peça da qual saíra instantes depois de se aperceber do céu claro.

Para finalizar aquela segunda peça, naquela hora displicentemente informada, carimbou o memorando e enviou-o. Isso foi feito quase quatro horas após o final da peça. E três horas mais tarde o memorando foi retornado com o parecer do destinatário inicial. Foram as palavras que lhe incitaram a mais uma aventura light das quais sentia saudades: negociar alguns dias de trabalho e voar até os braços amigos em terras férteis com marcos de vida há algumas centenas de quilômetros de distância. Uma negociação delicada será necessária para tal plano tornar-se real. Nessa altura do campeonato, quem aprovaria que ela arriscasse novamente o caminho da felicidade?

Afinal, o contrário dessa ousadia por ela mesma era amplamente apregoado. Será que conseguirá apoio e patrocínio para a aventura? De uma coisa estava certa: estaria de braços abertos para ser abraçada por aqueles braços tão incertamente amigos...

... Era a desconfiança que se colocava a postos de defesa dentro dela. Disto não conseguia se desvencilhar – e será que queria?

1 Comments:

Blogger mg6es said...

Oi, Kaká! Sempre vejo vc nessas linhas, e sempre intensa e bela. Espero que bons ventos estejam sempre soprando por ai.

Beijão!

3:11 PM  

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